Do Soft Power às Crises Humanitárias: o papel da comunicação no poder internacional
- Joana Feliciano
- há 19 horas
- 4 min de leitura
Tinha sido convidada para no dia 18 de setembro, participar enquanto oradora na mesa redonda da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), mas infelizmente por motivos de saúde não consegui estar presente. Contudo preparei este artigo com parte dos principais pontos que gostaria de ter partilhado. Espero que seja útil!
O encontro reuniu especialistas de diferentes áreas para debater as grandes transformações da política e da economia internacional: Catarina Henriques Silva (BNP Paribas Fortis), Tito Campos e Matos (Conselho Português para os Refugiados), Licínia Simão (FEUC/CES) e Louisa Lopes (AICEP), numa sessão moderada pela Professora Sarah da Mota.

Este é um resumo do que planeava partilhar na minha intervenção na mesa redonda da "Semana das Relações Internacionais" na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra dia 18 de setembro de 2025.

Um dos temas que me acompanha desde o início da carreira é o do papel da comunicação como instrumento de poder internacional.
Vivemos num sistema global cada vez mais líquido e volátil, em que a comunicação já não é acessória, passou a ser um instrumento constitutivo do poder. Hoje, as narrativas são armas estratégicas que circulam em segundos: moldam perceções, definem agendas e, muitas vezes, decidem quem tem legitimidade no cenário internacional. Vivemos num mundo em que os Estados como organizações competem não apenas por territórios ou mercados, mas também por narrativas que legitimam o seu lugar no mundo.
O académico Joseph Nye (Harvard) mostrou que o poder se pode exercer por coerção (e.g. força militar, sanções, embargos) - hard power; por atração (e.g. valores, cultura, narrativas) - soft power, ou por uma combinação inteligente dos dois - a coerção apoiada em legitimidade e valores - smart power. Esta estrutura ajuda-nos a compreender como, no século XXI, a diplomacia deixou de ser feita apenas com tratados e tanques, passando também a ser travada em reels, memes e tweets. Se as políticas precisam de legitimidade para serem eficazes, então a narrativa que as sustenta é tão decisiva quanto a ação em si.
Quem domina a narrativa conquista legitimidade - e sem legitimidade, até a força militar perde eficácia.
Um exemplo paradigmático é a diplomacia digital. Ministérios dos Negócios Estrangeiros e chefes de Estado comunicam diretamente com públicos estrangeiros através das redes sociais, numa prática que democratiza a diplomacia, mas também a fragiliza. A guerra na Ucrânia ilustra bem esta realidade: enquanto a NATO apoiava militarmente Kiev, o presidente Volodymyr Zelensky mobilizava a opinião pública global com mensagens curtas, discursos virais e apelos diretos a parlamentos estrangeiros. O campo de batalha militar foi complementado por uma verdadeira guerra narrativa, que revelou o potencial do soft power em tempos de conflito. Mas este poder traz riscos. Estudos do Oxford Internet Institute mostram que, só em 2022, mais de 80 países recorreram a campanhas organizadas de manipulação digital, muitas delas patrocinadas por Estados, com impacto em eleições, guerras e missões humanitárias. Num mundo onde deepfakes e fake news circulam mais rápido do que verificações factuais, a diplomacia digital pode facilmente transformar-se em propaganda.
Vamos a exemplos:
O caso de Donald Trump, talvez o exemplo mais disruptivo da comunicação política contemporânea. Ao governar via X (antigo Twitter), Trump transformou a comunicação presidencial em branding pessoal, contornando instituições e criando factos políticos instantâneos. Tweets sobre a Coreia do Norte, que oscilavam entre ameaças de “fogo e fúria” e convites a cimeiras históricas, mostraram como a comunicação direta pode alterar equilíbrios diplomáticos em tempo real. Mais do que um estilo, Trump inaugurou uma era em que a comunicação deixou de ser mero reflexo da política para se tornar, em si mesma, instrumento de poder internacional.
Se a geopolítica é hoje um campo de disputa narrativa, no setor humanitário a comunicação é, muitas vezes, uma questão de vida ou morte. Em crises como a epidemia de Ébola na África Ocidental (2014–2016), falhas iniciais de comunicação alimentaram desconfiança e ataques contra profissionais de saúde. Só quando líderes comunitários foram integrados como porta-vozes se conseguiu restabelecer credibilidade e adesão às medidas sanitárias. Durante a pandemia de COVID-19 (2020), vimos o contraste: países como a Nova Zelândia, sob a liderança comunicacional empática de Jacinda Ardern, conseguiram mobilizar sociedades com menos resistência do que aqueles que transmitiram mensagens inconsistentes. O mesmo se verificou na crise dos refugiados rohingya (2017- atualmente), onde campanhas digitais conduzidas por organizações internacionais procuraram contrariar narrativas de ódio e legitimação da violência.
Nestes cenários, o desafio é constante: comunicar rápido, mas com credibilidade; ser transparente, sem cair na instrumentalização mediática da ajuda.
Se há uma lição que a minha experiência internacional me deixou, é esta:
a confiança não nasce no pico da crise, constrói-se antes. É feita de consistência, empatia e coerência narrativa. Seja em diplomacia ou em humanitarismo, comunicar não é apenas informar. É articular valores, gerir sensibilidades e construir pontes em contextos de incerteza.
Se no século XX o poder residia no controlo de territórios, hoje ele reside na capacidade de contar histórias que o mundo acredita. São as narrativas que definem quem é visto como legítimo e quem fica isolado.
Dicas para profissionais de comunicação (inter)nacional
✅Mapear narrativas: identificar quem é representado como vítima, herói ou vilão.
✅Imersão cultural: credibilidade nasce da empatia.
✅Consistência e empatia: a confiança é um ativo estratégico.
✅Redes híbridas: diplomatas, ONGs, influenciadores e cidadãos digitais precisam de articular-se em resposta conjunta.
✅Literacia mediática: combater desinformação não só com fact-checking, mas com educação crítica.
👉 Se este tema te interessa, ou se acreditas que estas reflexões podem enriquecer debates em universidades, conferências ou organizações, fica o convite: desafia-me para novas intervenções. A conversa sobre comunicação, poder e direitos humanos está longe de terminar — e precisamos de mais vozes a construí-la.
Sugestões de Documentários e Leituras
The Great Hack (Netflix, 2009) — sobre desinformação e manipulação digital.
The Social Dilemma (Netflix) — o impacto das redes sociais na política.
Manuel Castells, Communication Power (Oxford University Press, 2009).
Referências
Nye, Joseph S. Soft Power: The Means to Success in World Politics. Harvard University Press, 2004.
Boin, Arjen et al. Creeping Crises. Springer, 2023.
Oxford Internet Institute. Computational Propaganda Project. University of Oxford, 2022.
Miskimmon, Alister; O’Loughlin, Ben; Roselle, Laura. Strategic Narratives. Routledge, 2013.
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