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A generosidade não é neutra

  • Foto do escritor: Joana Feliciano
    Joana Feliciano
  • 8 de set.
  • 5 min de leitura

Artigo de opinião escrito por Joana Feliciano a convite e publicado originalmente no website do Giving Tuesday Portugal.


Quando falamos de generosidade, pensamos muitas vezes em gestos bonitos, desinteressados, quase instintivos. Pensamos em fazer um donativo monetário, doar bens, dar o nosso tempo e competências em voluntariado, apoiar uma causa de alguma forma. Mas há uma pergunta que raramente fazemos: a quem é que damos? E quem é que continua de fora?


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Fiz parte de missões em campos de refugiado, trabalhei com comunidades de bairros periféricos de grandes cidades, com jovens e adultos de zonas rurais esquecidas, com pessoas em situação de sem-abrigo, com comunidades de etnia cigana, com mulheres afetadas por desigualdade, com pessoas com necessidades educativas especiais e outras em contextos de exclusão. Tenho estado envolvida em iniciativas centradas nos Direitos Humanos, migração forçada, igualdade de género, saúde mental e empoderamento comunitário, em Portugal, Moçambique, São Tomé e Príncipe e noutros contextos. Estas vivências moldaram profundamente a minha forma de comunicar e agir — com escuta, respeito e intenção. E, ao longo do tempo, fui percebendo que, mesmo com boa vontade, muitas das nossas práticas de “dar” acabam por repetir, sem querer, os mesmos padrões de exclusão que afirmamos querer combater.


Dar não é neutro. A generosidade também se aprende, também é moldada por normas sociais, pelos nossos medos, pelas histórias que ouvimos e pelas que nunca nos chegam. E, por isso, pode reforçar desigualdades - ou ajudar a repará-las.

Quem conta as histórias? Outra dimensão invisível da generosidade é quem tem o direito de falar em nome de quem. Quantas campanhas humanitárias, quantas iniciativas de voluntariado, quantas ações de “dar” são pensadas sem envolver quem mais precisa de ser ouvido?


Num dos projetos em que trabalhei em Lisboa com pessoas em situação de sem-abrigo, testemunhei o enorme esforço de dezenas de voluntários que, com genuína dedicação, praticavam escuta ativa, prestavam cuidados de saúde primários e ofereciam apoio psicossocial em várias zonas da cidade. No entanto, para lá desses grupos de voluntários e profissionais, percebi que as pessoas em situação de vulnerabilidade habitacional continuam invisíveis. Sentem medo de se expor e raramente são chamadas pelo nome. 


Tal como elas, muitos outros beneficiários permanecem excluídos da narrativa da generosidade, sem serem consultados sobre as suas reais necessidades - e, por isso, também acabam por ficar de fora da resposta.

Na Grécia, num campo de refugiados, acompanhei um grupo de mães com bebés. Muitas vezes nas intervenções sociais de fornecimento de bens essenciais existe a distribuição de forma genérica, sem considerar as diferenças culturais e necessidades específicas de quem recebe. Neste contexto muitas das mães não falavam grego nem inglês, mas através de intérpretes voluntários e ao escutar atentamente as suas vozes, criaram-se espaços exclusivos para as mães e os seus bebés - locais seguros onde podiam levar as crianças mais pequenas, amamentar, dar o biberon, brincar e descansar, longe da presença de um público masculino ou de comportamentos de risco. Um espaço onde podiam ser cuidadas, respeitadas e sentirem-se em segurança.


Estas exclusões não acontecem por mal. Acontecem porque é mais fácil ajudar quem se encaixa nas nossas ideias de “vítima digna” — um conceito criticado por humanistas como a filósofa Judith Butler, que nos alerta para a “dignidade condicional”, isto é, para o facto de nem todas as vidas serem reconhecidas socialmente como merecedoras de cuidado e proteção.

Ajuda-se quem é mais visível, quem se parece connosco, ou quem reforça o nosso sentido de utilidade. Mas, se não prestarmos atenção, acabamos por repetir a lógica do sistema: o que está na margem continua esquecido.


A generosidade consciente implica escuta, implica ceder espaço, implica aceitar que não temos todas as respostas. Mais ainda: implica reconhecer que há quem possa liderar, não só receber. E os dados confirmam: o relatório "Centering Equity through Flexible, Reliable Funding", publicado em 2022 pela Grantmakers for Effective Organizations (GEO) destaca a importância de práticas de financiamento que priorizem a equidade racial e forneçam suporte confiável e flexível para organizações lideradas por pessoas negras, indígenas e outras pessoas de cor  (BIPOC). O estudo alerta que as disparidades no financiamento e na liderança afetam a eficácia das organizações e a capacidade de promover mudanças significativas nas comunidades que servem.


Por isso, é fundamental apoiar projetos liderados pelas próprias comunidades. E há sinais promissores. Entre 2010 e 2019, apenas 14% das grandes doações feitas por financiadores não africanos foram atribuídas a ONGs africanas. Em contraste, esse valor subiu para mais de 55% em 2022 e 2023 — o que significa que os 880 milhões de dólares recebidos por ONGs africanas nesses dois anos ultrapassam o total que receberam durante toda a década anterior à pandemia, sinalizando uma mudança de paradigma. Estes dados, divulgados pelo relatório The Changing Landscape of Large-Scale Giving in Africa by Non-African Philanthropists (Bridgespan Group, 2024), sinalizam uma mudança importante na forma como a generosidade internacional é praticada no continente, com um reforço do financiamento direto e da valorização da liderança local.


Na Europa, iniciativas como a Alliance for Gender Equality in Europe mostram esse compromisso: desde a sua criação em 2021 até 2024, tinham investido mais de 4 milhões de euros em organizações lideradas por mulheres e pessoas LGBTQ+. Só em 2023, alocaram 3,5 milhões de euros a 28 pequenas organizações de igualdade de género da linha da frente em 16 países.


Dar é um ato político. Parece provocador, mas é verdade: escolher quem incluímos no nosso gesto de generosidade é um ato político. Não no sentido partidário, mas no sentido profundo de escolher um lado - o lado da justiça, da equidade, da reparação.

Quando damos palco a jovens refugiados para contarem as suas histórias, quando apoiamos projetos liderados por mulheres de grupos racializados em contextos de discriminação interseccional, quando decidimos trabalhar com comunidades onde o acesso à saúde, à educação ou à habitação digna continua a ser sistematicamente negado - como em bairros informais, zonas rurais isoladas ou territórios marcados pela exclusão histórica - estamos a afirmar: estas vidas importam. Mesmo quando não são as mais mediáticas. Mesmo quando nos obrigam a confrontar desigualdades profundas e a sair da nossa zona de conforto.


Dar, nestes casos, não é um consolo para quem dá — é uma escolha ativa de transformar as estruturas que mantêm tantas pessoas fora.


Na Solo Adventures, tenho acompanhado Sonhadores Praticantes - jovens e adultos de Portugal, Brasil, Moçambique e São Tomé e Príncipe, a investirem nos seus projetos de vida. No início, muitos perguntam: “Mas será que vale a pena mesmo sonhar? Será que tenho a capacidade para liderar a minha vida?”. A resposta é sempre clara: “Não só podes, como deves. A tua voz conta.” Talvez essa seja a forma mais profunda de generosidade: devolver o poder de imaginar e construir o futuro.


A minhas humildes recomendações finais são:


  • Pratiquemos mais uma generosidade com intenção. Antes de agir, podemos fazer algumas perguntas a nós próprios: Quem é que não estou a ver? A minha generosidade escuta ou impõe? Estou disposto(a) a dar espaço, mesmo que isso signifique sair do centro? Generosidade não é apenas fazer muito - é fazer com consciência, com cuidado e com humildade.

  • Pertencer é viver. No fundo, o que todas as pessoas querem - seja em Timor, em Setúbal, em Gaza ou em São Tomé - é pertencer. Ser vistas, ser levadas a sério, ser parte. Porque ajudar alguém a viver com dignidade é, talvez, o gesto mais generoso que podemos oferecer.

  • Dar não é só dar coisas. É dar tempo, dar lugar, dar oportunidade. É convidar para dentro quem sempre ficou de fora. E isso, sim, é um ato radical de generosidade.

Por tudo isto, afirmo: a generosidade nunca é neutra - mas pode e deve ser consciente. Que possamos escolher, com intenção e coragem, dar sempre com justiça, escuta e vontade genuína de transformar.

 
 
 

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